Uma noite em 77
Opinião de Pergunte ao almanaque
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Agora em outubro, todo mundo vai falar muito dos 40 anos do famoso gol do Basílio que deu ao Corinthians o título de campeão paulista depois de mais de 22 anos. Por isso, peço licença para abrir o mês me antecipando com este texto. Ele é bem diferente dos que eu costumo publicar aqui e foi inspirado em um outro, muito mais longo, que os interessados poderão encontrar no meu livro 20 Jogos Eternos do Corinthians, publicado pela Maquinária Editora em 2014. Mas a base dessa coluna continuarão sendo as respostas às perguntas dos leitores.
Elas serão sempre baseadas no Almanaque do Timão, trabalho que desenvolvo há mais de 20 anos sobre todos os jogos, jogadores e técnicos do nosso time desde 1910. Ele virou livro em 2000, foi reeditado em 2005 e agora existe na forma do APLICATIVO ALMANAQUE DO TIMÃO, para smartphones e tablets, que pode ser baixado (de graça!!!) via Apple Store ou Google Play. Nos dias (e noites) de jogos, esse aplicativo oficial do Corinthians continua sendo atualizado online.
O APLICATIVO ALMANAQUE DO TIMÃO também traz o GAME DO TIMÃO, uma plataforma de questões de múltipla escolha em que acertos e velocidade de resposta somarão pontos para um ranking geral de usuários cadastrados. Os mais bem ranqueados receberão prêmios periódicos (semanais, mensais, semestrais e anual), como réplicas de camisas antigas, camisas oficiais, camisetas, relógios, bijuterias, bonés e livros, além de visitas acompanhadas ao Memorial do Clube, no Parque São Jorge, e até ingressos de cortesia para jogos na Arena Corinthians.
CELSO UNZELTE
Corinthians 1 x 0 Ponte Preta
Campeonato Paulista/final – 3º jogo
Data: 13/outubro/1977
Local: Morumbi, São Paulo
Juiz: Dulcídio Wanderley Boschillia
Renda: Cr$ 3.325.470,00
Público: 86.677 pagantes (público total: 93.573)
Gol: Basílio aos 36 minutos e 48 segundos do 2º tempo
Expulsões: Rui Rei aos 18 do 1º; Oscar e Geraldão aos 40 do 2º
CORINTHIANS: Tobias, Zé Maria, Moisés, Ademir e Wladimir; Ruço, Basílio e Luciano; Vaguinho, Geraldão e Romeu. Técnico: Oswaldo Brandão
PONTE PRETA: Carlos, Jair, Oscar, Polozi e ngelo; Vanderlei, Marco Aurélio e Dicá; Lúcio, Rui Rei e Tuta (Parraga, no intervalo). Técnico: José Duarte
Ninguém aguentava mais. Nem ele nem, nem o filho nem os outros 93.571 corinthianos presentes no Morumbi, mais os milhões espalhados pelo Brasil que naquela noite acompanhavam pela TV o terceiro jogo da final do Campeonato Paulista de 1977, entre Corinthians e Ponte Preta.
Vinte e dois anos, oito meses e mais sete dias e noites como aquela era mesmo muito tempo. Suficiente para o Brasil ter sete presidentes da República, de Juscelino Kubitschek ao general Ernesto Geisel, fora os interinos. Para o mundo conhecer três papas (Pio XII, João XXIII e Paulo VI). Para serem disputadas seis Olimpíadas, de Melbourne, na Austrália, em 1956, a Montreal, no Canadá, em 1976. Tempo suficiente para o Brasil disputar cinco Copas do Mundo e ganhar três, a primeira delas, em 1958, com o ídolo corinthiano Gilmar abrindo a escalação no gol e a última, em 1970, com o também ídolo corintiano Rivellino fechando o time do Tri, deslocado na ponta esquerda. Acontecia de tudo no Brasil e no mundo. Só o Corinthians não era campeão.
Por isso, naquela noite, mais uma vez sentado na arquibancada do Morumbi, ele estava decidido: iria pedir perdão ao filho, que, como sempre, também estava lá, sentado ao seu lado. Quantas vezes na vida havia repetido aquele ritual? Na maioria delas, é verdade, o destino foi outro, em geral o Pacaembu, pois até 1960 o Morumbi nem sequer existia e até 1970 era pouco utilizado. Orgulhava-se de ter estado presente naquele fim de tarde de 6 de fevereiro de 1955, comemorando no gramado o título do IV Centenário após o empate por 1 a 1 com o Palmeiras. Depois daquilo, se o Corinthians nunca mais voltou a ser campeão paulista ou mesmo brasileiro (apesar de continuar ganhando alguns torneios nacionais e internacionais, entre eles o Torneio Rio-São Paulo de 1966, dividido com Santos, Botafogo e Vasco), não foi por falta de apoio dele e, depois, do filho.
Quando Paulo Borges e Flávio acabaram com o tabu de mais de dez anos sem vitórias pelo Campeonato Paulista contra o Santos de Pelé, em 1968, ele estava lá, apesar de o menino ter nascido apenas oito dias antes. Em 1971, já ao lado do filho, eles acreditaram, juntos, que um jovem chamado Adãozinho ajudaria a virar para 4 a 3 um jogo que parecia impossível diante do Palmeiras. E virou mesmo!
Também juntos, haviam acompanhado a decepcionante derrota por 1 a 0 para o Palmeiras na final do Paulista em 1974 e a invasão ao Maracanã, no jogo contra o Fluminense que classificou o Corinthians para a decisão do Campeonato Brasileiro de 1976. Haviam estado lá, juntos, novamente, apenas quatro dias antes, no segundo jogo daquela mesma decisão contra a Ponte, em um domingo de sol feito para que os 146.082 presentes (recorde do estádio que jamais será batido) enfim soltassem o grito de “campeão”. Quis o destino, porém, que mais uma vez o adversário colocasse água no chope, virando o jogo para 2 a 1 depois de Vaguinho ter feito 1 a 0 e provocando aquela terceira partida.
Por tudo isso é que ele estava decidido a pedir perdão ao filho. Sabia muito bem que, na escola, os meninos que torciam para o São Paulo falavam dos títulos paulistas de 1970, 1971 e 1975. Que os que torciam para o Palmeiras enchiam o peito para falar dos títulos nacionais de 1967, 1969, 1972 e 1973, fora os paulistas de 1972, 1974 e 1976. Que os que torciam para o Santos... Ah, deixa pra lá! Sabia, enfim, que existia um adjetivo terrível associado a todo torcedor do Corinthians, coisa que antes de ser assumido com satisfação os outros faziam questão de repetir com sadismo: “sofredor”. Corinthiano era sofredor. Ele era sofredor. Um apelido popularizado dez anos antes daquela final, em 1967, quando, na África do Sul, o doutor Christian Barnaard realizou o primeiro transplante de coração, inspirando o casal Manoel Ferreira e Ruth Amaral a compor a marcha de Carnaval Transplante de Corinthiano. Gravada pelo apresentador de TV Sílvio Santos, a música dizia:
Doutor, eu não me engano, o coração é corinthiano.
Doutor, eu não me engano, o coração é corinthiano.
Eu não sabia mais o que fazer, troquei o coração, cansado de sofrer.
Ai, Doutor, eu não me engano, botaram outro coração corinthiano.
O filho, portanto, era sofredor, e muitas vezes ele, que também sofria, se sentia o maior culpado por isso. Culpado de ter dado apenas duas opções para o filho escolher o time para que ia torcer — uma camisa branca e outra listrada, as duas do Corinthians.
O sentimento de culpa aumentou naquela noite. Chegar até ali já tinha sido um sofrimento (mais um!): depois da derrota por 1 a 0 para o Guarani, só três vitórias seguidas nos últimos três jogos conduziriam o Corinthians àquela final. Elas vieram, contra o Botafogo, em Ribeirão Preto (1 a 0), a Portuguesa (1 a 0) e o São Paulo (2 a 1). Mas o sofrimento continuava. Mesmo sem Palhinha, seu melhor jogador, contundido e substituído pelo esforçado Luciano, o Corinthians foi pra cima da Ponte. Mas a bola, mais uma vez, teimava em não entrar. Com três minutos e meio de jogo, o corinthiano Luciano arriscou um chute de longe que bateu no pé da trave esquerda. Aos 17, o centroavante Rui Rei, da Ponte, foi expulso por reclamar de uma falta. Antes do fim do primeiro tempo, Geraldão, o artilheiro corintiano naquele campeonato, acertou uma fantástica meia-bicicleta, mas o goleiro Carlos foi buscar a bola lá em cima, mandando para escanteio.
No segundo tempo, o Corinthians continuou insistindo. Cada vez que a Ponte Preta tocava na bola o Morumbi inteiro soprava os furiosos apitos que haviam sido distribuídos entre a torcida, na esperança de atrapalhar o toque de bola adversário. Se o 0 a 0 permanecesse, haveria prorrogação de mais trinta minutos. Se a prorrogação também terminasse empatada, o campeão seria o Corinthians, por ter mais vitórias que a Ponte (26 contra 23) ao longo da competição. Mas o presidente ponte-pretano, Lauro Morais, havia passado a semana inteira dizendo que o regulamento era falho, que o favorecido em caso de empate deveria ser o seu time, que tinha acumulado mais pontos. E que por isso, se houvesse prorrogação, a Ponte se recusaria a jogar.
Era mesmo muito sofrimento. Por isso, ele estava decidido a pedir perdão ao filho ali mesmo, com a bola rolando, aos 36 minutos e 48 segundos do segundo tempo. Justo no momento em que a bola se ofereceu ao pé direito de Basílio, depois de ter viajado para a área na cobrança de uma falta por Zé Maria, se chocado contra o travessão no chute de Vaguinho e ter sido salva em cima da linha pela cabeça do zagueiro ponte-pretano Oscar, após uma outra cabeçada, do corintiano Wladimir. Basílio, um jogador discreto, que havia chegado menos de três anos antes com a responsabilidade de vestir a camisa 10 de Rivellino, mas que naquela noite estava com a 8. Que teve uma parada respiratória dentro de campo em um jogo contra o América de São José do Rio Preto, mas que pelas mãos do corinthianíssimo doutor Osmar de Oliveira sobreviveu para se tornar o autor do tão aguardado gol da libertação.
“É gente que se abraça, é gente que chora, é gente que ri”, improvisa o locutor Fiori Gigliotti pela Rádio Bandeirantes, enquanto ele, abraçado ao filho, ainda pensava no pedido de perdão. As últimas duas bolas endereçadas para a área do Corinthians são devidamente rechaçadas por chutões providenciais, primeiro de Zé Maria, depois de Wladimir. Caem no meio da torcida e não voltam mais. A fumaça dos fogos de artifício forma uma nova nuvem, que desce ao gramado e não mais se dissipará. Na comemoração que não terá fim, muitos invadem o campo, alguns fincam suas bandeiras, outros arrancam as redes e até comem grama. O presidente Vicente Matheus perde um pé de seus sapatos brancos. O pai e o filho se abraçam. Riem que nem tontos, olhando um para o outro, depois para o campo, depois um para o outro, depois para o campo novamente. Descobrem que não sabiam como se comemorava um título, e aí riem mais ainda. Antes que o pai, enfim, pedisse perdão por ter lhe causado tanto sofrimento, é o filho que se antecipa agradecendo. Por lhe ter feito corinthiano.
Este texto é de responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Meu Timão.
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