Venha fazer parte da KTO
x
O misterioso samurai do placar
Walter Falceta

Walter Falceta Jr. é paulistano, jornalista, neto de Michelle Antonio Falcetta, pintor e músico do Bom Retiro que aderiu ao Time do Povo em 1910. É membro do Núcleo de Estudos do Corinthians (NECO).

ver detalhes

O misterioso samurai do placar

Coluna do Walter Falceta

Opinião de Walter Falceta

13 mil visualizações 124 comentários Comunicar erro

O misterioso samurai do placar

Quando bem contada, a história muda a história

Foto: Montagem de WFJr.

A história secreta deste personagem já foi contada em um evento do Núcleo de Estudos do Corinthians (NECO), no Parque São Jorge, no ano passado. No entanto, cabe recordá-la e compartilhá-la com os amigos do Meu Timão.

Façamos uma viagem no tempo, lá pela metade do Século 20. O imigrante japonês Tomio foi tentar a sorte nas terras do norte do Paraná. Devotado, corajoso, trabalhava até 14 horas por dia.

Quando sobrava algum tempo para o descanso, cedia ao costume aprendido com os brasileiros. Corria ao radinho ouvir notícias sobre o futebol.

Depois das campanhas fantásticas do time de Baltazar, Luizinho e Claudio, apaixonou-se pelo Corinthians.

Ao filho Emerson Heidi Yto, nascido em Marialva, deu dois presentes. O primeiro: condições para que estudasse e se graduasse em Engenharia Eletrônica, na Universidade Mackenzie. O segundo: o amor pelo clube que unia as raças, credos e classes sociais.

Em 1979, Yto vibrou quando obteve colocação na Digitalmatic, dos irmãos cearenses Cordeiro Araújo, empresa especializada na instalação e manutenção de placares eletrônicos em estádios.

Além de trabalhar em sua área, imaginou que poderia assistir a bons jogos de futebol, alguns do seu time do coração.

Funcionário disciplinado, assíduo e tecnicamente capaz, ganhou a função de operador dos placares nos jogos em São Paulo.

Assim, passaria anos "marcando gols" a partir das cabines do Pacaembu e do Morumbi. No estádio tricolor, foram 28 anos de serviços, até que o equipamento foi substituído por um novo, em 2008.

Foram muitas emoções, uma sucessão enorme de tristezas e alegrias.

Um dia, no entanto, Yto deixou de ser coadjuvante anônimo do espetáculo para converter-se em protagonista.

Contemos a história. Em 1984, ano da luta pelas Diretas-Já, o Flamengo tinha ainda um timaço, com craques do naipe de Fillol, Leandro, Junior, Nunes, Adílio e Bebeto.

Nas quartas de final, foi bater-se contra o então bicampeão paulista, o Corinthians democrático de Sócrates, Casagrande, Wladimir e Zenon.

O primeiro jogo ocorreu no Rio, em 29 de Abril, e os cariocas botaram 98.656 pessoas no Maracanã. Com gols de Élder e Bebeto, os rubronegros saíram em êxtase do estádio, celebrando antecipadamente a classificação.

A conduta celebrativa foi seguida pelos jornais da Cidade Maravilhosa. Antes do tempo, nos deram como derrotados.

A imprensa esperava uma torcida corinthiana conformada com a desclassificação. No entanto, 115.002 pessoas fiéis se reuniram no Morumbi para assistir à revanche.

Jogo de altíssimo nível, desde o primeiro minuto. Bebeto perde um gol claro no início do espetáculo. Disputa dura, sempre na bola. Até que, aos 32 minutos, Zenon lança para Biro-Biro. Este aproveita-se de falha de Figueiredo e manda para as redes.

O técnico corinthiano Jorge Vieira não queria ver comemorações. "Ainda precisamos tirar a diferença no placar agregado", berrava.

Cinco minutos depois, o raçudo Wladimir rouba uma bola no meio de campo. Ela vai a Biro-Biro, Sócrates e Eduardo, antes de retornar ao próprio Wladimir, que decreta o segundo gol mosqueteiro.

O segundo tempo começa quente. Aos 7 minutos, o voluntarioso Edson municia Sócrates, que passa a Zenon. Este, em jogada de gênio, toca por cima da defesa flamenguista e encontra o mesmo Edson, que arremata para o gol. Três a zero.

Aos 14 minutos, outra jogada para tapar a boca dos críticos. Quem disse que Sócrates não corria?

Ele avança como um bólido pela direita da defesa para receber o lançamento de Edson. Domina a bola com maestria e serve na medida para Ataliba mandar o petardo e estufar a rede do adversário.

Sete minutos depois, no entanto, o aguerrido Flamengo marcou seu gol, em uma bola dividida de Paulinho que encobriu o goleiro Carlos. Jorge Vieira parecia prestes a sofrer um ataque cardíaco.

Nunes, incansável, tentava marcar o seu. Em uma bola no ataque corinthiano, o goleiro Fillol - jogando contundido, com uma proteção no joelho esquerdo - antecipa-se a Casagrande, atravessa a linha divisória do gramado e serve a João Paulo, que cruza sobre a área. Juninho, pelo Corinthians, salta de cabeça e mata a jogada.

O jogo é tenso até o último minuto. Poucos corinthianos se atrevem a cantar o "está chegando a hora".

Quando a vitória é irreversível, no entanto, o homem do placar, o paranaense Yto resolve responder à arrogância dos cronistas e torcedores cariocas, que durante a semana deram a vaga como garantida.

No placar, com fino humor, exibe os horários dos voos da ponte-aérea para o Rio de Janeiro. A princípio, poucos compreendem o chiste.

Pouco depois, Yto programa em seu primitivo computador Digital PDP111 a mensagem final, que brilha em luzinhas amareladas: "Boa Viagem".

A diretoria do Flamengo ficou bronqueada e o árbitro da partida, Arnaldo César Coelho escandalizou-se. Citou os fatos em seu relatório da partida e exigiu que atitudes como aquela fossem coibidas no futuro.

"Os responsáveis receberam advertência e o fato não mais se repetiu", bazofiou-se, tempos depois, o árbitro.

Evidentemente, a bronca correu os corredores da cartolagem e foi desaguar pesada sobre o tímido corinthiano do placar.

Yto, no entanto, não se deu por vencido. Naquele período de insurgências, crepúsculo da Ditadura Militar, usou o placar para divulgar uma nova mensagem.

No jogo contra o Fluminense, na semana seguinte, a massa de 90 mil pessoas viu uma tesourinha brilhar no placar do Morumbi. Era o delicado protesto contra a censura.

Hoje, aos 59 anos, casado, pai de uma filha de 21 anos, Yto ainda lida com os antigos placares eletrônicos, alguns deles desmembrados e enviados para estádios menores, como o Eduardo Guinle, em Nova Friburgo, e o Edson Passos (Giulite Coutinho), no Rio de Janeiro.

"Os placares da velha geração são testemunhas de um tempo que se foi no Brasil, de futebol bonito, técnico e de muita torcida nos estádios", relembra Yto, nostálgico. "Esses registros não se apagam e lá estão as conquistas do nosso querido Corinthians".

Em Junho de 2015, após vitória mosqueteira por 2 a 1 sobre o Internacional, o responsável pelo placar de Itaquera copiou a estratégia de Yto.

Em luzes vibrantes, escreveu um "#poenodvd", uma maneira de ironizar as lamúrias coloradas em relação às arbitragens, expostas pelas "denúncias" reunidas em DVD pelo cartola gaúcho Fernando Carvalho.

E não foi a última vez. O placar corinthiano já foi mordaz outras vezes, sempre com humor e elegância.

Nosso bom e querido samurai triunfou também como professor.

Este texto é de responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Meu Timão.

Avalie esta coluna
Coluna do Walter Falceta

Por Walter Falceta

Walter Falceta Jr. é paulistano, jornalista, neto de Michelle Antonio Falcetta, pintor e músico do Bom Retiro que aderiu ao Time do Povo em 1910. É membro do Núcleo de Estudos do Corinthians (NECO).

O que você achou do post do Walter Falceta?