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O tesouro que perdemos

Corinthians de raiz: movimento, jogo solidário, garra e inventividade.

Arquivo Pessoal

O Corinthians raiz e o Corinthians da pós-modernidade

Opinião de Walter Falceta

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Caras amigas e caros amigos, confesso que, depois de nossos últimos amargos resultados, embarquei numa profunda reflexão. Portanto, lá vem textão! Se estiver com tempo escasso, deixe para ler depois.

Vamos lá... Muitos torcedores brasileiros raciocinam sobre futebol como se fosse um pebolim. Basta escalar fulano ali, sicrano aqui e beltrano no meio. Supostamente, tudo se resolve trocando o 4-1-4-1 pelo 3-5-2, substituindo-se um Gabriel por um Cantillo.

Ora... Muito antes das inovações de Rinus Michels e Cruyff, os europeus já sabiam que o mais importante era o conjunto de movimentos e interações entre os jogadores, suas trajetórias entrecruzadas pelo campo.

Aqui no Brasil, entretanto, também houve gente com esse tino. Vejamos! De 1926 a 1931, o próprio Corinthians teve técnicos que pensavam o jogo de forma essencialmente moderna, dinâmica, holística e integral.

Rocco e Montarini (especialmente o segundo) montaram times de pegada, cooperativos, em que um jogador amparava o outro, em que cada um se dedicava a corrigir a eventual falha de um companheiro.

O termo "mosqueteiro", aliás, emergiu justamente em razão dessa conduta atlética que misturava fibra e solidariedade, num dos times dirigidos pelo formidável italiano Virgilio Montarini.

Conforme a narrativa de meu avô, corroborada pelo colega Celso Unzelte, o termo ganhou repercussão a partir de nossa primeira vitória internacional, contra o Barracas, da Argentina, em jogo disputado no Parque São Jorge, no feriado de Primeiro de Maio de 1929.

Foi a expressão usada pelo célebre jornalista Thomaz Mazzoni para valorizar a conquista e o jogo ousado e solidário dos alvinegros.

Esse timaço era um tesouro do ludopédio. E teve seus próprios trios, nomeados como tributo aos heróis do escritor Alexandre Dumas. Tuffy, Grané e Del Debbio eram chamados de Três Mosqueteiros pela imprensa e pela torcida.

E o fabuloso trio de meio tinha a mesma fama. Nerino, Guimarães e Munhoz jogavam muita bola. Os três funcionavam como engrenagens bem encaixadas de um carrossel.

O time tricampeão em 1928/1929/1930, liderado por Montarini, também nos daria o prazer de assistir a magníficas apresentações de Filó, Gambinha, Apparício, Rato e De Maria.

Montarini dirigiu o time que viria a ser chamado de "Campeão dos Campeões", expressão que migrou ao nosso hino, ao vencer duas vezes o então poderoso Vasco da Gama na "decisão nacional" de 1930.

Tuffy, Rafael e Del Debbio; Nerino, Guimarães e Munhoz; Filó, Peres, Gambinha, Rato e De Maria; este não era um time de pebolim, mas multitarefa, racional, em que cada atleta cuidava de suas funções e colaborava para girar o engenho coletivo.

Os jornais da época costumavam destacar o "conjunto" do Corinthians, representado, sobretudo, pela figura culta, aguerrida e simpática do goleiro Tuffy, admirado por atletas do Timão e de outras equipes.

A melhor liderança sempre patrocina esse tipo de sinergia. Foi o que fez nosso querido Del Debbio, já como técnico, no fim da década de 1930.

O time da primeira metade da década de 1950 também carregava essa marca. O torcedor comum só se lembra de Brandão quando falamos de 1954.

Mas aquela equipe solidária e raçuda foi constituída por Rato, ex-jogador que se havia convertido em uma liderança técnica competente e agregadora. O goleiro Cabeção, por exemplo, me dizia sempre do profundo respeito que tinha por Gylmar e da amizade colaborativa que os unia.

Mário Travaglini e Jorge Vieira seguiram esse roteiro e foram capazes de enriquecer a experiência da Democracia Corinthiana. Basta rever as grandes conquistas do período, marcadas pelo futebol solidário de jogadores que se tornavam polivalentes. Sócrates era, ao mesmo tempo, taticamente disciplinado, criativo e atento às necessidades do conjunto.

Esse espírito determina, por exemplo, os gols de Biro-Biro contra o São Paulo, na final de 1982. Procure no Youtube. Vale a pena. Jogo franco, de movimentação, em que os atletas não guardavam posição, mas abriam espaços e trabalhavam na criação coletiva permanente.

Mais recentemente, o próprio Tite recobrou esse DNA da alegria contributiva, especialmente no belo esquadrão que conquistou o título brasileiro de 2015. Nosso Romero era pau para toda obra. Contra os tricolores, naquele ano, fez de tudo. Auxiliou a defesa, armou ataques e estufou as redes adversárias.

O Timão dos últimos quatro anos, ao contrário, tem sido justamente o oposto deste modo raiz de jogar, vencer e encantar. Hoje, prevalece o pebolim, de atletas amarrados, geralmente em posição defensiva, com raras triangulações, cada um fechado em seu próprio script, sem noção da integralidade necessária ao futebol competitivo e vencedor.

Não tem sido diferente com Sylvinho, que parece desconhecer esse modelo dinâmico da velha-moderna tradição, marcada por aproximações, overlappings, avanços de surpresa dos volantes, marcações dobradas, interceptações e compactação permanente.

As preleções no idioma "coachês" pós-moderno talvez não atendam às exigências de uma equipe competitiva, especialmente de um time como o Corinthians, que tem uma alma própria, comunitária e inventiva, compartilhada conosco, sua maravilhosa torcida.

O discurso do treinador - confuso, empolado, obscuro e difícil - carrega um traço inequívoco de relativismo conveniente, de auto-absolvição, de imperdoável rejeição da realidade objetiva que, no decorrer das décadas, definiu a vitoriosa trajetória corinthiana. Sylvinho é uma expressão caricata dessa mentalidade de autorreferência, da soberba que marca também seus empregadores.

A cartolagem, especialmente do Departamento de Futebol, precisa estudar mais nossa história, cultivar de fato a humildade e compreender melhor as raízes culturais do clube. O pós-modernês brega e artificial dos atuais dirigentes não "orna" com o Time do Povo.

Vai, Corinthians!

P.S.

* O escritor e jornalista Christopher Hitchens dizia o seguinte: “A tirania dos pós-modernistas derruba as pessoas pelo tédio e pela prosa semi-alfabetizada.”

** Há quem diga que o termo “Mosqueteiro” surgiu em 1913, por conta do torneio da Liga Paulista de Foot-Ball. O Corinthians seria o quarto participante, o D'Artagnan. O termo, no entanto, somente foi associado ao evento décadas depois. Além disso, o certame tinha um quinto participante: o Ypiranga. Ficamos, portanto, com a história da conquista de 1929.

Veja mais em: História do Corinthians .

Este texto é de responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Meu Timão.

Por Walter Falceta

Walter Falceta Jr. é paulistano, jornalista, neto de Michelle Antonio Falcetta, pintor e músico do Bom Retiro que aderiu ao Time do Povo em 1910. É membro do Núcleo de Estudos do Corinthians (NECO).

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