'A mulher acha que não tem direito': movimento luta por presença feminina na Arena Corinthians
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Por Lucas Faraldo
"Aqui não é lugar de mulher."
"Futebol é coisa de homem."
"Maria macho."
"Vai lavar louça."
Esses são alguns dos inúmeros discursos discriminatórios que milhões de torcedoras, sejam do Corinthians ou de qualquer clube, ouvem quando adentram no ainda machista ambiente do futebol. E é contra esse preconceito que centenas de mulheres apaixonadas pelo Timão estão se unindo no chamado Malvinegras: o Movimento Alvinegras.
Em crescente e hoje já composto por mais de 500 mulheres reunidas em diferentes grupos de WhatsApp, o Malvinegras surgiu em outubro do ano passado inspirado num então recém-criado movimento de torcedoras do Palmeiras. A militância fala mais alto que o clubismo.
"Sempre fui bastante engajada em causas feministas de arquibancada. Conversei com as meninas que costumavam ir em jogos comigo e propus de fazermos algo semelhante. Para tentar chamar mais mulheres para o estádio, porque a gente via que as mulheres tinham muita dificuldade de ir ao estádio sozinhas, tinham receio, dependiam de um homem para levar, não tinham atitude de ir ao estádio", explicou Alana Takano, uma das fundadoras do Malvinegras, em entrevista concedida ao Meu Timão.
"Surgiu a partir disso, de a gente querer atrair a mulherada para o estádio. Apesar de passarmos dificuldades por sermos mulheres nesse ambiente, é um ambiente pra gente também, podemos fazer parte dele", disse Alana, sobre a criação do movimento
"Só vamos mudar esse ambiente quando realmente passarmos a frequentar e a existir ali no nosso espaço, nosso direito, nosso respeito", acrescentou.
'É louco de explicar'
Você leitor ou leitora do Meu Timão pode questionar: "ora, já cansei de ver mulher na Arena Corinthians". Pois bem: trata-se, admita você ou não, de exceções. Minoria no estádio, o público feminino via de regra ainda vem acompanhado de um braço masculino: pai, namorado, marido e até filho. Sozinha (ou sozinhas) nas arquibancadas? É raridade. E é difícil de explicar. Mas, ironicamente, fácil de entender – ao menos pra quem sente na pele a discriminação de gênero desde que é fadada a brincar de boneca e não bola. Desde sempre.
"Crescemos ouvindo que futebol é coisa de homem, que a gente é maria macho. Você é sempre pré-julgada. Se você não tem a atitude de botar a cara a tapa e ir ao estádio, você acaba deixada de lado, não tem motivação para ir, espera alguém pegar na sua mão e falar 'vamos comigo'. É uma coisa muito louca de explicar. Mas você acha que não tem direito de comprar o ingresso e ir na hora que quiser. Você consegue ir a um bar, a qualquer lugar a hora que quiser. Mas no estádio tem receio de ir sozinha", detalhou Alana.
Não é só a discriminação explícita de quem olha (ou fala) com estranhamento para uma mulher (ou grupo de mulheres) sozinha na arquibancada. O clima de preconceito está velado até mesmo em atitudes num primeiro momento pintadas como nobres por parte de homens.
Seja em programas que muitas vezes de forma rasa debatem a violência em estádios, seja nas entranhas de torcidas organizadas que muitas vezes vivem no dia a dia a tal violência reverberada na mídia: a arquibancada é desenhada como lugar perigoso. E perigo é coisa de homem. Sob pretexto de protegê-las, criam uma zona anti-mulheres independentes.
"Você é desencorajada a vida inteira a ir ao estádio. Acham que precisamos ir com homem para nos defender. Nós é que não podemos abaixar a cabeça. É louco de falar, explicar, mas quando falamos entre as mulheres, todas se entendem e sentem a mesma coisa."
Independência dos homens. E entre as próprias mulheres
Talvez a pedra filosofal do Movimento Alvinegras seja a busca pela independência das mulheres, em relação a homens, para ocupar de fato o lugar a que tem direito nas arquibancadas. Mas há também, internamente, um movimento para evitar a dependência das mulheres entre si.
Inicialmente, era possível contar nos dedos das mãos as mulheres que compunham o movimento e se reuniam para ir ao estádio. Hoje esse grupo, nos encontros em bares e arquibancadas, já é composto por dezenas de mulheres. Virtualmente, por sua vez, adentra a casa das centenas de corinthianas. E a ideia é estimular a amizade entre elas e a consequente formação de "sub-grupos" entre as que tiveram maior afinidade.
"A gente está vendo que as meninas já estão criando o hábito de ir para o jogo, não só na empolgação inicial, então o resultado já está saindo do papel. Algumas já criaram grupo fixo de amigas para ir (aos jogos). Nossa ideia não é criar dependência só do movimento para irem ao estádio. Que criem laços igual eu e minha turma temos, frequentamos estádio no mesmo setor há três anos já. Nossa ideia é que elas criem esse hábito de forma confortável para a rotina delas", ponderou a fundadora.
"Elas têm de ter liberdade para criar os laços delas e criar suas próprias histórias", decretou Alana
Na prática, nesses sub-grupos, há maior facilidade para uma torcedora ajudar outra. E isso se dá de diversas formas: ajuda para achar carona, indicação de um trajeto para quem não conhece direito a cidade de São Paulo, orientação para comprar os próprios ingressos, além de claro a própria companhia nas arquibancadas.
Sororidade que fala?
Sororidade é a parceria entre mulheres, baseada na empatia e no companheirismo, em busca de alcançar objetivos em comum. É um jargão bastante presenta na luta feminista. E representa bem o Malvinegras em conjunto com outros movimentos de torcidas femininas.
A própria relação entre os movimentos de corinthianas e palmeirenses exemplifica bem isso. Um inspirou o outro. E o outro defendeu o um quando necessário, de forma espontânea:
"Temos uma ótima relação com as meninas do Palmeiras. Perguntei se haveria problema de nos inspirarmos nelas pra fazer um movimento semelhante. Porque há a rivalidade entre clubes e há uma rivalidade muito incutida entre mulheres, as pessoas veem as mulheres como rivais umas das outras", relatou Alana, antes de contar um causo específico:
"Houve um episódio em que criou-se um boato de que elas haviam nos copiado. Fizemos questão de explicar publicamente que não, que nós que nos inspiramos nelas. E hoje olhamos para trás e vemos que nós também já inspiramos outros movimentos femininos, como os do Avaí e do Santos."
No exemplo talvez mais recente de sororidade entre torcedoras de clubes de futebol, foi lançada na última segunda-feira a campanha Torça Como Uma Mulher, unindo movimentos de mulheres fãs do esporte bretão espalhados por todas as cinco regiões do Brasil.
"Nossa ideia principal é atrair mulher, mais do que discutir os problemas. Todo tipo de mulher pode frequentar estádios. Essa é a ideia central do movimento, caminhar juntas para construir essa segurança feminina para irmos sozinhas aos jogos", pontuou Alana.
Na luta há pelo menos dois anos
Há quase dois anos, bem antes de encabeçar o Movimento Alvinegras, Alana já lutava em meio a torcedoras do Corinthians pelos direitos das mulheres no mundo da bola. Foi em cima dela que se concentraram as críticas de quem se incomodou com a campanha feminina contra a Nike em 2017 - na ocasião, a fornecedora havia se recusado a lançar modelo feminino do uniforme profissional do Timão.
"Lembro que fiz campanha contra a Nike em 2017 por causa da falta de camiseta feminina e recebi críticas, foi muito desgastante, falavam que a Nike não deveria ouvir uma mulher mimada que queria uma camiseta", declarou Alana, que vê uma evolução, desses dois anos para cá, no que diz respeito ao engajamento da Fiel às causas feministas de arquibancada.
"Diretamente a gente nunca foi hostilizada. Recebemos comentários em rede social do tipo: 'não precisa desse movimento', 'mulher não vai ao estádio porque não quer'. Às vezes até mulher não tem sensibilidade de perceber que, mesmo ela indo, outras não conseguem ir. Esse é um dos que mais incomodam: não é possível que o fato de ela ir sozinha ao estádio é um diferencial. Não deveria ser. Mas é. Ela é diferente. Mas de forma geral o retorno tem sido muito mais positivo", analisou, antes de concluir:
"Tem muito homem abraçando o movimento também, achando justo. A gente recebe crítica, claro, aparece um homem ou outro, aquele papo de lavar louça, mas o retorno é muito mais positivo do que negativo com certeza."
Que sejam sinais de um novo tempo. Uma nova era. Melhor pra elas. Melhor pra todos.
* Ano passado, em amistoso disputado na Arena Corinthians contra o Cruzeiro, o Timão liberou a entrada gratuita de mulheres nas arquibancadas.