Em um movimento repentino, que soou como desesperado após duas derrotas cruciais terem escancarado o erro de planejamento para 2023, Cuca foi anunciado como técnico do Corinthians na tarde de ontem. Imediatamente começaram os questionamentos por ele ter sido condenado na Suíça em razão do estupro coletivo de uma adolescente de 13 anos.

Sobre o caso em si, Cuca nega ter mantido qualquer contato com a garota suíça, que, segundo Marília Ruiz, não o teria reconhecido. Por outro lado, matéria publicada pelo tradicional jornal Der Bund, de Berna, cuja cópia está disponível em alemão na internet, aponta que foram encontrados vestígios de sêmen do jogador (indicado pelo seu nome, Alexis) no corpo da vítima. A reportagem completa, aliás, é bastante perturbadora. Ainda que eu desconheça o processo e não esteja aqui discutindo o mérito da condenação, a inconsistência flagrante entre o relato de Cuca e a evidência material reportada pelo periódico suíço põe em xeque a versão do treinador para o caso. Se ele pretende um dia se redimir como pessoa pública, deverá enfrentar a sério o assunto, por mais doloroso que seja, em vez de invocar um apagão de memória que, sinceramente, não convence.

O Corinthians é identificado historicamente com as minorias que são maioria. É desse traço que provém a sua singularidade enquanto clube. Para ficarmos no passado mais recente e no tema dessa coluna, o clube tem sido pioneiro na popularização do futebol feminino e tem promovido a emblemática campanha “Respeita as minas”. Não deveria ser surpresa, então, que o anúncio de Cuca no comando do Corinthians reverberasse de forma diferente de quando foi anunciado em times rivais, que não necessariamente estão associados aos mesmos valores. Eram favas contadas que o histórico de Cuca despertaria um grau inédito de revolta de muitos corinthianos e, sobretudo, de menos corinthianas.

É verdade que outra parte dos torcedores, talvez mais desesperada do que a própria diretoria, parece ver com bons olhos a chegada do técnico. Cuca, afinal, tem um histórico vitorioso como treinador. Em meio à ansiedade por um desempenho melhor dentro de campo, representantes dessa parcela da torcida chegam a rotular as posições críticas à contratação como “lacração” ou como uma espécie de manifesto ideológico – como se o repúdio a um caso mal explicado de violência grave contra uma mulher fosse um marcador de ideologia, e não de decência.

Na era das redes sociais, temos sido colocados cada vez mais no estranho papel de juízes das vidas alheias. As versões dos fatos chegam a nós enviesadas e raramente temos tempo para apurar a fundo as circunstâncias de cada situação. O desconforto é natural, além de tudo, porque, sendo todos nós seres imperfeitos, algumas campanhas de linchamento virtual pendem para a hipocrisia. No fundo, todos sabemos que qualquer um pode sentar no temido banco dos réus dos tribunais da internet.

Reconhecer que a chamada "cultura do cancelamento" merece limites, no entanto, é diferente de fazer vista grossa a qualquer situação, independentemente da gravidade. Ainda mais diferente é aceitar que a diretoria do Corinthians não exija ativamente padrões morais rigorosos na seleção dos seus profissionais de liderança. A falta de títulos ou o mau futebol não vão apequenar o clube, como muitos temem. Já passamos por tempos de vacas magras e resistimos. A degradação da essência da instituição, essa sim, é a ameaça mais séria ao futuro do time do povo.

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