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Maradona da Fiel
Rafael Castilho

Rafael Castilho é sociólogo, especializado em Política e Relações Internacionais e coordenador do NECO - Núcleo de Estudos do Corinthians. Ele está no Twitter como @Rafael_Castilho.

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Maradona da Fiel

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Maradona da Fiel

Neo Química Arena prestou homenagem a Maradona nesta quarta-feira

Foto: Divulgação / Neo Química Arena / @IDCorinthiana

Pensei muito antes de falar do Maradona. Decidi que a primeira coisa a se dizer é que me parece absolutamente desnecessário saber se ele é o maior, segundo maior, terceiro maior ou quarto maior jogador da história. Maradona é único.

Ao ouvirmos a obra de Tchaikovsky, não estamos pensando se ele supera Mozart, Beethoven ou Bach. Quando se vê um quadro de Picasso, não se torce para que ele seja melhor do que Salvador Dali, Miró, Da Vinci, Michelangelo, Frida Khalo, Tarcila do Amaral ou Velazquez. Ao nos debruçarmos num livro de Ernest Hemingway, não estamos nem aí se ele é melhor ou pior do que Liev Tolstói, Dostoiévsky, Garcia Marquez, Júlio Cortázar ou Jorge Amado.

Tudo bem que o futebol é um esporte competitivo. Mas, Maradona expressa tanto e entendeu tanto o que é futebol que foi muito mais do que o próprio futebol. Sua grandeza, que é única, se dá justamente por ser a expressão desse futebol que é muito mais do que o jogo jogado nas quatro linhas.

Maradona foi uma representação da vida em suas diferentes faces. Foi uma expressão da sua nacionalidade, dos dilemas existenciais, da dramaticidade da vida.

Maradona foi um agente político, um militante anti-imperialista, um técnico de futebol. Foi comentarista, referência cultural e foi tão futebol, mas tão futebol, que em grande parte do tempo soube ser apenas torcedor.

Ah, Maradona foi também um jogador de futebol. O mais genial e incrível que eu pude ver jogar.

O grande lance para entender Maradona é esse. Um gênio do futebol, craque espetacular, vencedor, artista e que além de tudo expressava sempre mais do que o jogo que estava sendo jogado. Representava a sua gente e seus sentimentos dentro da cancha. Ou, se preferirem, Maradona era um artista agitador, boêmio, agente político, representante de sua gente, ator, que também jogava bola e era gênio com a bola nos pés.

Me perdoem, mas foi um grande desperdício histórico Maradona não ter jogado no Corinthians. Poucos jogadores exprimem tanto, mesmo sem querer, o que o Corinthians é. Esse mundo complexo, os corações inquietos e as cabeças atormentadas que vão parar dentro do jogo no campo de futebol e se realizam naquele jogo com regras pré-definidas. E ao mesmo tempo, como foi no caso de Maradona, essa experiência de jogo que nunca mais sai de dentro da gente. Não dá mais pra sair do personagem. Vai conosco para qualquer lugar. É definitivo.

Dentre tantas coisas que desencadearam nos 7x1 que o Brasil tomou da Alemanha, e foram tantas coisas, posso dizer sem nenhuma dúvida que havia uma energia péssima e negativa na torcida brasileira. Além dos problemas políticos e sociais que estávamos vivendo (e continuamos), quero destacar aquela coisa horrorosa da torcida brasileira passar o tempo inteiro xingando o Maradona de cheirador. Sim, a ofensa faz parte do futebol, pois um futebol cumpre sim um papel de ressignificação dos conflitos. Mas o que poderia ser engraçado em uma frase, se tornou sintomático ao percebermos que a torcida do Brasil, por si só, jogando em casa, sem seu povo real dentro dos estádios, não tinha sequer um canto para apoiar a seleção. A única música que unia a torcida era ofender o Maradona por sua dependência química.

E foram muitas as vezes que ouvimos comentários desse tipo. “Pelé foi melhor do que Maradona porque nunca precisou usar drogas e nunca foi esse péssimo exemplo”.
Já comecei o texto dizendo que me parece irrelevante falar sobre o Maradona comparando se é melhor ou pior do que o Pelé. Ora, quem disse que mau exemplo para os outros é apenas o que se faz com o próprio corpo? É isso que define o caráter de um homem e não como ele se comporta com a sua coletividade?

Maradona sangrava e todo mundo via. Maradona caia. Maradona era humano. Logo, Maradona era palpável, era um de nós. Sim, cada um tem seus erros e me parece desnecessário dizer a essa altura o quanto pode ser destrutivo para você e para quem te cerca a dependência com as drogas. Mas cada um de nós sabe aonde o calo aperta. Quando fazemos mal para nós mesmos. Não quero romantizar a tragédia pessoal de Maradona, mas simplesmente abomino os julgadores. Aqueles que se sentem em condição de usar os outros como maus exemplos, salvaguardando suas posições como “gente de bem” ao lado das pessoas nas salas de jantar acostumadas em nascer e morrer.

O jogo era contra a Inglaterra. Fica difícil hoje explicar o que estava em jogo naquele jogo. No futebol quase tudo é simbólico. É uma metáfora da vida. A Guerra das Malvinas havia sido um desastre para a Argentina. Significou a falência definitiva da Ditadura Militar. O governo, como qualquer ditadura, sobrevivia de engodos. No começo o argumento é que necessário se faz impor a ordem e acabar com a corrupção, mas quando a realidade se impõe é preciso desviar a atenção para qualquer outra coisa que não seja a absoluta incapacidade desses governos trazerem resultados concretos para a sociedade. No caso Argentino, primeiro foi a Copa de 1978. Sim, houve um respiro. A Argentina ganhou na marra. O patriotismo aflorou e o regime se aproveitou. Quando as coisas se deterioraram mais, preciso foi encontrar uma nova campanha. Uma nova patriotada. Iniciou-se a campanha pela retomada das Ilhas Malvinas, ocupada pelo Reino Unido desde 1833. O Governo Argentino sabia que provocaria uma reação do Governo Britânico e foi o que houve. Iniciou-se uma guerra. De início funcionou, havia novamente um surto patriótico, até porque a causa é justa. Mas logo a realidade se impôs e a Argentina acordou com a morte de mais de seiscentos soldados, pelo menos é o que foi divulgado.

O calor era imenso, a tensão pairava no ar.

Maradona estava jogando a Copa de sua vida. Jogando demais. Arrebentando. Fazendo os adversários tremerem. Certamente era seu grande momento.

No primeiro tempo a Argentina já fora melhor. Maradona voando foi caçado. Mas já dava pra ver que estava sobrando. Maradona era voluntarioso. Não se contentava com pouco. Queria fazer história.

Quando começou o segundo tempo, mano do céu (mano de dios). Ali se fez a história.
Maradona infernizando na intermediária tabelou e já correu para receber na grande área. O zagueiro tocou na bola e mandou na direção de Maradona e aí se fez a confusão. Diego voou com extrema impulsão, disputando a bola com o goleiro inglês. Mas os centímetros que lhes faltavam foram completados com a mão.

Pode parecer um roubo simples, mas foi genial. O juiz ficou concentrado em comprovar que não haveria impedimento, pois, a bola havia sido tocada pelo zagueiro. O toque com a mão de Maradona foi um golpe de ilusão. No tempo certo. No ângulo correto para que o juiz não pudesse perceber. Foi muito mais bonito do que se tivesse sido tocado com a cabeça. Mas, lembrem-se, no futebol quase tudo é simbólico. A trapaça que viria a decidir o resultado da partida cumpriu um papel redentor. Era sim uma reparação ao sentimento de injustiça cravado na espinha do povo argentino. Diego era sim o salvador daquele povo. La mano de Dios. Igual quando a gente dizia no jogo de rua: “Deus é justo!”.

Mas para que não restasse dúvida da superioridade de Maradona. De que não se tratava tão somente de ganhar trapaceando, poucos minutos depois se fez o gol mais incrível da história das Copas. Maradona saiu de seu campo de defesa, driblou metade do time inglês. Em pouquíssimos segundos chegou, driblou também o goleiro e fez o mundo aplaudir. Fez a Argentina chorar. Vários ingleses caídos ao chão.

Mas esse jogo, esse gol, não é só argentino. Sem querer roubar isso dos nossos vizinhos, a glória é deles, Maradona é deles. Mas é a expressão do que é o latino-americano.
Essa catimba. Alguns preferem chamar de malandragem. De gingado. Essa habilidade que desenvolvemos não é uma forma de trapaça ou arte do engano, como alguns preferem acreditar. Na verdade, é a resistência. É a insubordinação. É uma ressignificação do jogo e das coisas à nossa maneira. Uma tropicalização. É irreverência – ir contra o rei. É tornar possível o que para nós foi colocado como impossível. É fazer acontecer com o que nós temos disponível. É uma espécie de arte de vencer os mais poderosos. E nosso futebol, o brasileiro e o argentino tem perdido no campo porque também fora dele estamos nos recolonizando voluntariamente. Nos subordinamos culturalmente intencionalmente e isso certamente reflete no jogo, pois esse jogo é parte da vida.

E Maradona foi isso. Parte do que é o futebol. Parte do que é a história de seu povo.

Transgressor, herói, anti-herói, maldito, deus, diabo, original e eterno.

Veja mais em: História do Corinthians.

Este texto é de responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Meu Timão.

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Por Rafael Castilho

Rafael Castilho é sociólogo, especializado em Política e Relações Internacionais e coordenador do NECO - Núcleo de Estudos do Corinthians. Ele está no Twitter como @Rafael_Castilho.

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