O grande erro na nova ação de marketing do Corinthians
Opinião de Walter Falceta
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Posso dizer que, como torcedor, acompanhei de perto a Democracia Corinthiana. Depois, como jornalista, tive vários encontros com Doutor Sócrates, este excepcional jogador e formidável ser humano.
Cheguei a perguntar-lhe sobre a declaração, dos anos 1980, na qual ele sugere que o corinthianismo seja uma religião.
Ele, que tinha um intelecto privilegiado, respondeu que se tratava de uma licença filosófica e poética. Ou seja, o amor pelo clube tem elementos de fé e veneração, mas não se trata, efetivamente, de um credo religioso.
Vamos esmiuçar o conceito. Até agora, muita gente ainda não entendeu a diferença entre ser corinthiano e ser corinthianista. Vou tentar explicar, com base em minha pesquisa histórica, nos trabalhos do Núcleo de Estudos do Corinthians (NECO) e na participação em outras entidades ligadas ao SCCP.
O corinthiano torce pelo clube. Quer vitórias e títulos. Ele se encanta pelos astros do time e tem orgulho de trajar a camisa de um clube vencedor. Enquanto apaixonado pelo futebol, ele não é muito diferente de um santista, um palmeirense ou um vascaíno.
Mas, e o corinthianista? Ele tem um comportamento semelhante a este descrito acima. No entanto, ele é MAIS. O corinthianista está identificado com a "causa" de um clube popular, que desde sua fundação preza a inclusão, a democracia, a diversidade e a solidariedade.
Diferentemente de outros clubes do início do Século 20, o Corinthians surgiu com uma proposta de agregar todos os cidadãos, não importava a cor da pele, a classe social, o credo religioso e o tamanho da conta bancária.
Os clubes da elite praticavam políticas de exclusão e segregação. O clube de Battaglia e Magnani, não! A turma do Bom Retiro logo ficou famosa por agregar o italiano calabrês da maloca, o negro filho de um ex-escravizado, o japonês que mal sabia falar o Português, o espanhol que veio ao Brasil para escapar da sina de miséria.
O corinthianismo, portanto, vai muito além da paixão pelo ludopédio. Ele está ligado a uma ideia de solidariedade, união, procedimento generoso, justiça, igualdade e liberdade.
Segundo essa visão, no Corinthians somos todos iguais, seja você um estagiário numa empresa de TI, uma sem-terra, um jovem bem-sucedido que lidera uma startup, um operário do ABC, um morador de um estúdio descolado na Rua Augusta ou uma mulher batalhadora que luta pelos direitos de sua comunidade na periferia.
E essa igualdade não é retórica. No corinthianismo, praticamos a cidadania, o altruísmo, o respeito pelo outro. Em suma, o corinthianista estende a mão a quem se atrasou pelo caminho.
Sou neto de trabalhadores imigrantes que viviam na Rua Anhaia, no Bom Retiro, à época da fundação do clube. E foi isso que eles, corinthianistas de primeira hora, me ensinaram. Não invento. Reconto a história.
De certa forma, a campanha de marketing do Corinthians foca em alguns desses aspectos. Desse ponto de vista, ela é correta. Trabalha com conceitos de resistência, resiliência e fidelidade, que efetivamente são traços do corinthianismo.
No entanto, peca gravemente ao reunir esses preceitos sob o manto da religião. O termo religião deriva da expressão "religare", que é estabelecer uma reconexão com o primitivo da criação, aquilo que é sagrado e místico.
No entanto, na compreensão cotidiana, a religião se estabelece como crença na presença viva e perceptível da deidade, vivida por uma conduta de prática moral e celebração ritual que une o espírito a uma ou mais entidades divinas.
Religião é coisa séria. E crenças religiosas devem ser respeitadas. Não se justifica a intolerância, ainda que as forças da justiça do Estado laico devam estar atentas a seguidores de uma ou outra denominação que adulteram a base doutrinária para justificar patrulhamentos, inquisições ou mesmo guerras.
Ora, a análise racional dos conceitos nos conduz a uma conclusão: o corinthianismo não é e nunca será uma religião, no sentido estrito do termo. Será antes uma designação de nosso ethos, ou seja, de nosso conjunto de tradições de conduta e comportamento, traços que se explicam pela Antropologia e pela Sociologia, não pela Teologia.
No corinthianismo de verdade, a diversidade nos une pelas diferenças. Aqui, convivem o budista, o seguidor das religiões afrobrasileiras, o católico, o evangélico, o muçulmano, o adepto do judaísmo e até mesmo o ateu.
Sócrates, cuja imagem é utilizada nesta campanha, tinha sérias restrições ao uso da religião para fins de controle e manipulação das mentes. Além disso, ele não era santo, mas um sujeito incrivelmente humano, com suas falhas e virtudes, com suas dúvidas e convicções, com seus erros e acertos, moldado pelo desejo de ser melhor a cada dia.
O corinthianismo? É maravilhoso! Mas não é religião. O corinthianismo é um fenômeno que se dá no campo da experiência social humana, é padrão de conduta solidária no dia a dia, é resistência nas lutas diárias que travamos pela sobrevivência.
E o principal, caro leitor: corinthianismo não é um produto que possa ser definido e enquadrado pelo interesse comercial de um departamento de marketing.
Este texto é de responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Meu Timão.